2007/05/26

CINEMA ÀS QUARTAS



O ODOR DO SANGUE | L'ODORE DEL SANGUE
DE MARIO MARTONE
30 MAIO 2007 | 21:30

Este texto foi publicado na revista «6ª»/Diário de Notícias (5 Jan. 2007), com o título ‘Elogio do trágico’.

Muito se fala do desconhecimento em que permanecemos face à variedade interior de algumas cinematografias europeias. E com razão. Não se trata, entenda-se, apenas de países mais ou menos “distantes” no mapa cultural da Europa: de facto, há muito que o mercado deixou de manter uma relação regular com os produtos de França ou Itália, noutros tempos (anos 60/70 e ainda parte da década de 80) centrais nas opções de distribuidores e exibidores.

Não simplifiquemos, no entanto. Desde logo porque as crises internas que, de uma forma ou de outra, abalaram essas cinematografias não podem deixar de influir na sua própria capacidade de exportação. Mas também porque é um facto que, em anos recentes, algo mudou e para melhor: apesar de tudo, qualquer espectador actual – desde que munido dessa salutar qualidade que é o desejo de descoberta – pode ter uma percepção razoável de algumas tendências (nacionais ou estéticas) do cinema que se faz na Europa. As televisões pouco ou nada fazem para contribuir para essa salutar diversificação, mas isso é outra história (sendo, no fundo, a mesma...).

Tudo isto para dizer que, com a estreia de «O Odor do Sangue« (2004), importa saudar a chegada (finalmente!) de Mario Martone às salas portuguesas. Nascido em 1959, em Nápoles, Martone é um criador genuinamente original que, através de títulos como «Morte di un Matematico Napoletano» (1992), «L’Amore Molesto» (1995) ou «Teatro di Guerra» (1998), tem procurado trabalhar a partir de matrizes clássicas do melodrama. O seu objectivo: dar conta de tensões afectivas e impasses sociais muito contemporâneos.

Protagonizado por Fanny Ardant e Michele Placido, «O Odor do Sangue» poderá definir-se como uma história de amor que desafia a própria possibilidade (formal e moral) de contar uma história de amor. Isto porque a relação entre marido e mulher é, aqui, encenada a partir das ligações extra-conjugais de ambos, vividas num clima de silenciosa conivência, numa espécie de ilegalidade consentida, potencialmente devastadora.

Não que este seja um filme sobre a fidelidade como mero jogo de “verdade” e “mentira”. Aliás, a sua respiração eminentemente trágica é estranha a qualquer dispositivo de natureza telenovelesca. Na verdade, a história de Silvia e Carlo integra uma interrogação absolutamente selvagem. A saber: até que ponto cada cônjuge pode, ou sabe, reconhecer a verdade mais radical do(s) desejo(s) do outro? E como sobreviver a isso?

«O Odor do Sangue» também não é, entenda-se, um filme ingenuamente “libertário”. O que Martone filma confunde-se, em última instância, com o carácter insolúvel de qualquer desejo, sendo Silvia a vítima sacrificial dessa insolubilidade. E se outras razões não houvesse para descobrir este filme, a Silvia composta por Fanny Ardant seria suficiente: respeitando as exigências do mais tradicional registo psicológico, a actriz sabe colocar em cena uma transcendência que nenhuma religiosidade, a não ser a do corpo, consegue exprimir.

Texto de João Lopes

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